Ciência com uma estreita simbiose com o Homem, que a concebeu, a Inteligência Artificial vale-se da capacidade do computador para processar símbolos, automatizando faculdades mentais até hoje desconhecidas das máquinas.
Não pretende este artigo abordar questões técnicas, fornecer uma introdução à Inteligência Artificial (IA), nem expor o seu "estado da arte". Tal só seria viável num ensaio relativamente longo, uma vez que a IA não está ainda suficientemente difundida na cultura de nível universitário do público a que se dirige esta revista, ao contrário do que sucede com outros domínios científicos. Felizmente, existem já algumas obras publicadas em Portugal que se dedicaram a fazê-lo, e as quais aconselhamos na secção de sugestões de leitura para aprofundamento.
Em contraposição, o tópico da IA suscita quase sempre, entre leigos e não só, discussões acaloradas sobre os limites apriorísticos das máquinas, muitas vezes por oposição aos do Homem, e independentemente do saber científico e técnico actuais. Tais confrontos de opinião são frequentemente mais emocionais, filosóficos, religiosos, ideológicos, etc., do que propriamente científicos; o que não significa desvalorizá-los. Por consequência, pareceu oportuno neste artigo:
- endereçar os fundamentos e suposições em que assenta a IA actual bem como os seus limites teóricos e epistemológicos, e de seguida comparar esta com a mente humana, argumentando em conclusão por um posicionamento simbiótico;
- justificar e salientar a importância tecnológica e económica da IA, e, portanto, fornecer também um quadro sintético do seu ensino e investigação em Portugal;
- perspectivar as problemáticas gerais atrás referidas à luz de temas mitológicos clássicos que as permeiam até hoje, fornecendo-lhes uma leitura moderna, com suporte na literatura e filosofia originadas pelos progressos científicos e técnicos relativos à Máquina;
- abordar o tema da potencial perigosidade da IA.
Destas opções terá porventura resultado, espero, um artigo de temática mais original, demonstrando o interesse em examinar a ciência e tecnologia sob um ponto de vista mais lato, e lançando um ponte entre as inegáveis duas culturas a que se referiu C. P. Snow.
FUNDAMENTOS COMPUTACIONAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A Inteligência Artificial é uma disciplina científica que utiliza as capacidades de processamento de símbolos da computação com o fim de encontrar métodos genéricos para automatizar actividades perceptivas, cognitivas e manipulativas, por via do computador. Comporta quer aspectos de psicanálise quer de psicossíntese. Possui uma vertente de investigação fundamental acompanhada de experimentação, e uma vertente tecnológica, as quais, em conjunto, estão a promover uma revolução industrial: a da automatização de faculdades mentais por via da sua modelização em computador.
Depois do trabalho pioneiro, nos anos 30, dos matemáticos Church, Gödel, Kleene, Post, e especialmente Turing, que forneceu um fundamento matemático à Ciência da Computação, tornou-se claro que a noção de computação não se esgota no cálculo numérico. De facto, a noção abrange tudo o que é um processo efectivo tendo em vista obter um resultado, e que use apenas para isso quaisquer símbolos (i.e. padrões) e quaisquer operações sobre esses símbolos (expressas também elas por símbolos), desde que uns e outras sejam perfeitamente definidos. O computador é o artefacto que incorpora e dá eficácia prática a essa noção, a qual tem, demonstradamente, a máxima generalidade concebida. Na verdade, a tese da computabilidade simbólica universal é impossível de refutar através dos referidos processos efectivos.
O projecto ambicioso da IA apoia-se, em última análise, nessa generalidade. A sua limitação essencial será quando muito a da representabilidade do conhecimento por tais meios simbólicos...! Não parece possível, no entanto, examinar com rigor exteriorizável e objectivo, tal limitação, sem usar esses mesmos meios simbólicos. Não haverá ciência do irrepetível, nem conhecimento objectivo exteriorizável sem um suporte baseado na identidade do símbolo. A tese da suficiência da representabilidade simbólica de todo o conhecimento não é facilmente rebatível, e não o foi ainda, constituindo um repto fértil para a investigação. A dificuldade de rebater essa tese não significa que não haja conhecimento não-simbolizável. Mas se delimitação existe, a exploração aquém dos limites é mesmo assim infindável, mal tendo começado. A pergunta permanece: o que é um símbolo, tal que a inteligência o possa usar, e o que é a inteligência, tal que possa usar um símbolo?
INTELIGÊNCIA NATURAL E ARTIFICIAL
O computador torna possível a IA porque é uma máquina que processa símbolos de forma automatizada e eficiente. Tal processamento poderia em teoria fazer-se com papel, lápis e cérebro; mas seria incómodo, e na prática não iria longe. Até que ponto se podem fazer analogias completas com o cérebro, depende deste ser também modelizável exclusivamente como um processador de símbolos.
Um ponto básico a este respeito é o da distinção entre "software" e "hardware", que é rica em consequências. Nomeadamente ela explica a não obrigatoriedade de correspondência entre uma função e o suporte material dessa função. O "hardware" do nível físico não tem de ser específico de uma função realizada a nível mais alto pelo "software", antes possibilita a execução de uma variedade dessas funções. Outra consequência da distinção entre "hardware" e "software" diz respeito ao nível de explicação. Um programa pode ser entendido, na sua função ou disfunção, em termos do seu próprio nível de discurso, da sua linguagem. Claro que uma disfunção pode originar-se no "hardware" de suporte, mas nesse caso ela manifesta-se num comportamento bizarro do programa, não entendível ao seu nível de discurso, e não específica desse programa.
A Ciência da Computação, por definição, só é possível ao perceber-se que o "software" tem uma independência em relação ao "hardware". Caso contrário estar-se-ia a estudar o computador A, a máquina B, o autómato C, ou o cérebro D, e não a computação em geral. Tal noção, que não é óbvia, é hoje em dia comummente aceite, apesar de relativamente recente.
Poderá ser que entretanto se descubram novas noções de computador, ou melhor, de computação. Tal equivale possivelmente a perguntar se é possível um conhecimento exteriorizável, observável, repetível e objectivo, que não seja completamente expressável através de símbolos discretos organizados em linguagem. Por outras palavras, se será possível uma ciência não simbólica, em particular uma ciência não simbólica do cérebro. O computador é um automatizador de teorias, mas desconhecemos se haverá "hardware" não simbólico, inclusive biológico, cujo funcionamento seja indiscritível em termos de símbolos e manipulações sobre eles.
Mas até lá, o computador pode fornecer modelos da competência cognitiva, independentemente do substrato que permite a sua manifestação em "performance". Ao fazê-lo vai redefinindo entretanto o conceito de máquina cognitiva.
Ao aceitarmos as duas premissas: que o cérebro tem em grande parte uma componente de processamento de símbolos, e que há em grande parte uma independência do "software" em relação ao "hardware" não simbólico, isto é, que podemos discutir as questões de processamento de símbolos do cérebro sem fazer necessariamente apelo às operações orgânicas que as suportam, então podemos encontrar no computador uma fonte nova de metáforas, que inclusive reconciliam a visão do determinismo material com a visão mentalista teleológica. De facto, o computador veio elucidar um problema filosófico de sempre, o da interacção corpo-mente (o "mind-body problem"), em todas as suas versões monistas ou dualistas, com ou sem interacção, com ou sem epifenómenos, etc., porque reconcilia aquelas duas visões: cada uma é afinal um ponto de vista, uma descrição da mesma coisa.
Como se concilia então o determinismo com a teleologia, isto é, com a intencionalidade guiada por objectivos?
Imagine-se um círculo e outro dentro, e que este último representa um ser com intencionalidade. Que esse ser possui uma memória e essa memória registou eventos passados. Que esses eventos interactuam entre si na memória do ser, e há portanto uma causalidade entre eles. Fora desse círculo interior existe a causalidade do mundo do círculo exterior. No entanto, o ser intencionante, em virtude da sua memória, conseguiu isolar do exterior um certo nexo causal, e é permeável ao exterior só até certo ponto. Ele próprio escolhe em parte a sua abertura ao exterior. Digamos que temos um oceano causal, no meio do qual há uma bolha, mais ou menos isolada dessa causalidade exterior, com todo um mundo causal próprio dentro de si. Aí podem originar-se, actuando de dentro para fora, processos causais correspondentes à efectivação da intencionalidade do ente. É claro que ele está submetido ao banho causal exterior, não podendo escolher exactamente as causas a que está sujeito, embora podendo escolher algumas.
Ora, qualquer das causalidades, interior ou exterior, é determinística, mas o carácter, digamos, secreto, da causalidade interior é fonte de surpresa para a causalidade exterior, porque é uma causalidade acumulada, histórica, e portanto imprevisível olhando apenas às circunstâncias exteriores e de fronteiras actuais. A liberdade do ser consiste em ser dependente do seu nexo causal interno, e se possível independente do nexo causal externo (2).
A finalizar esta secção seria bom referir quais as diferenças entre a inteligência natural e a artificial, tal como as concebemos hoje em dia. Primeiro, o cérebro é susceptível de regimes de trabalho que não são do tipo tudo ou nada como o computador. O cérebro pode estar ébrio, pode estar alucinado, ou com sono, e isso corresponde a regimes de funcionamento que têm um nexo próprio, ao passo que o computador não. O computador ou funciona num único modo bem caracterizado, ou não está funcionando de todo, isto é, o funcionamento que exibe então não faz sentido quanto ao que dele se pretende. Adicionalmente, o cérebro tem grandes capacidades de paralelismo, como é sabido, e só hoje em dia se começam a explorar computadores com tais capacidades. Por fim, o cérebro tem a característica de ser autoprogramável, isto é, tem um sistema motivacional e uma consciência reflexiva com capacidade de em grande medida controlar todo o seu funcionamento, e mesmo de suprir ou superar mecanismos nervosos de nível mais baixo.
Na computação, como a entedemos usualmente, há dados que variam com as circunstâncias, mas cada programa é fixo. Pouco se explorou a capacidade de autoprogramação, embora a possibilidade de o programa se automodificar esteja presente em certas linguagens de programação. Talvez porque não se sabe bem que fazer com isso, pois tal involve a capacidade de definição de objectivos genéricos variáveis, os quais no homem são quer herdados quer adquiridos culturalmente, em interacção aberta e continuada com o meio.